dimanche 23 septembre 2012

chico e os olhos do carrasco: de paratodos a parapoucos


Dos grandes nomes que despontaram nos anos 1960 o de Chico Buarque talvez tenha sido o que mais fiel se manteve àquilo que, nessa mesma época, passou a ser denominado como MPB. Isso não quer dizer necessariamente que Chico tenha se tornado o guardião dessa entidade, mas apenas que o seu foco permaneceu a maior parte do tempo nela concentrado. Numa entrevista, chegou a dizer que enquanto Caetano e Gil se reuniam para ouvir os Beatles, ele ia com Tom Jobim ao centro da cidade escolher um piano para comprar. Sua abertura para os influxos sonoros da cultura mundial, do emergente universo pop, certamente foi muito mais comedida, criteriosa e desconfiada do que aquela dos tropicalistas. Nesse sentido, Chico aproxima-se mais de Paulinho da Viola. Mas Paulinho da Viola vincula-se, antes de tudo, à grande tradição do samba – uma tradição que o guarda-chuva da MPB tomou de empréstimo, como tantas outras, reconhecendo nela uma espécie de fonte, mas que jamais foi totalmente a ele integrada.
Estamos demasiadamente acostumados a tomar o samba como raiz, como ponto de partida para elaborações ditas mais modernas. Quando se fala de bossa nova, contudo, o assunto costuma girar em torno das influências. E, no entanto, Paulinho da Viola, tal como o conhecemos, dificilmente seria possível sem João Gilberto. O caráter esquivo de muitas das melodias do estilo maduro de Paulinho da Viola, seu repertório de indefinições e, sobretudo, a capacidade de criar suspensões temporais no interior delas – suas pausas de mil compassos para ver as meninas – devem muito à Bossa Nova. Mas pouco ou nada se fala a respeito disso. Porque de certo modo é preciso deixar Paulinho da Viola na posição de representante zeloso, delicado e cordial da grande tradição do samba. Como se o samba tivesse uma vida em paralelo, sublimada, subtraída à própria história, e Paulinho fosse um filho puro, um desdobramento natural dessa nobre linhagem. Dizer que sua música foi influenciada pelo reprocessamento que a classe média fez do samba é, talvez, tirar dele um pouco da nobreza, desse lugar algo idealizado no qual foi posto.
Nuno Ramos chamou a atenção para o caráter extemporâneo da obra de Paulinho – obra que resistiu às solicitações do presente para refugiar-se num tempo próprio, recuado, o tempo expandido da “imensidão íntima”. Mesmo a obra prima da canção política que é “Sinal Fechado” parece ter sido um acidente em sua trajetória, um casual e efêmero reencontro de Paulinho com a urgência do tempo presente. A letra nada mais é do que a narração desse momento. Esse afastamento (ou descaso) do presente imediato e a demarcação de um território paralelo têm sido um dos locais por excelência de cultivo da música popular brasileira – local resguardado, sobretudo, pela teimosia intransigente de João Gilberto. Na verdade, a bossa nova não surgiu exatamente nesse lugar, mas ali foi posta pela brutal mudança de ventos trazida pelos anos 1960. Paulinho certamente se beneficiou disso, mas criou (ou criaram para ele) a ilusão de que sua música derivava exclusivamente de fontes mais puras. Acho que vem daí um pouco de sua relação desencontrada com a MPB – Paulinho era o filho do samba do morro, e não de Jobim e de João Gilberto.
De fato, nada foi mais indicativo dessa proximidade e, ao mesmo tempo, dessa distância de Paulinho da Viola em relação à MPB do que o mal-estar ocorrido no fatídico episódio do réveillon de Copacabana, quando se homenageou Tom Jobim. Ali, mais do que nunca, ficou clara a posição ambígua de Paulinho da Viola, entre ser e não ser parte da linha de frente da MPB. A descoberta de que seu cachê havia sido menor do que o das outras estrelas do evento – Chico, Caetano, Gil, Milton, Bethânia e Gal – foi a prova a um só tempo eloquente e vulgar disso. A prova de que o elo da MPB tornava-se cada vez mais frágil. Na hora da chuva, percebeu-se que Paulinho tinha metade do corpo fora do guarda-chuva.
Na verdade, o próprio guarda-chuva da MPB podia ser visto como a tentativa de unificar simbolicamente as diferenças e contradições da sociedade brasileira. Parece que muitas das figuras mais fascinantes e lendárias dessa música foram seres de fronteira, verdadeiros navegantes sociais. A própria eleição do samba como música por excelência do Brasil e o reconhecimento de que essa música era, em sua base, o produto de uma ralé urbana, algo ociosa e marginalizada, em sua maioria composta pelos descendentes de uma escravidão mal e tardiamente abolida parecem ter fortalecido a ideia de uma integração nacional criada a partir da aliança dos vários extratos sociais. Aliança que efetivamente aconteceu no plano da música popular, de sua linguagem. E, acontecendo nesse plano, nada mais normal do que essa aliança se desse sob o signo do afeto, da harmonia e da conciliação de vozes. (Alguns biólogos consideram o surgimento da música como “tecnologia de coesão social”, evolutivamente vantajosa, posto que permitia aos primeiros grupos humanos permanecerem unidos). De fato, para a geração de Chico e Caetano praticamente não havia diferença entre pensar a música popular e pensar o Brasil – a música tornava-se um modelo, não apenas de revelação do que já éramos, mas também de experimentação do que poderíamos ser.
Por uma série de circunstâncias, a primeira maturidade da canção comercial urbana se deu não apenas no mesmo momento de ampliação da indústria cultural e da unificação do imaginário nacional via rádio – Rádio Nacional – mas também da formulação de ideias mais generosas, singularizantes e afirmativas sobre os destinos da nação. Já nos anos 1930, Noel Rosa estava preocupado com a definição das “coisas nossas”; pouco depois, inspirado em Villa-Lobos, Ary Barroso sinfonizou o samba transformando-o em monumental afirmação do ufanismo da Era Vargas.
O que estou querendo dizer é que desde muito cedo – desde sua primeira formatação como linguagem maleável e dinâmica, urbana e moderna, coloquial e direta, já significativamente deslocada da herança romântica do século XIX – a música popular associou-se ao mito de um país unificado em torno de ideais de convívio cordial, informalidade e mistura; a ideais de sedução, alegria e de uso intenso e prazeroso do corpo. Isso ocorreu de tal modo que terminou por confundir-se com esse mito. Mais do que portadora do mito-Brasil, a música popular tornou-se ela própria uma instância não apenas difusora, mas também elaboradora desse mito. Mito que está inscrito nas camadas mais profundas da linguagem, que se faz sentir não apenas intelectualmente, mas por meio da totalidade dos sentidos. Mito capaz de injetar significado nos ossos.
Com a bossa nova, a crença na canção ganhou ainda mais intensidade, pois ela passou a ser o veículo por excelência de afirmação cultural do país no exterior – um país capaz de produzir símbolos de validade internacional por seu teor de modernidade e ousadia singular, e não por meros exotismos. A partir de Jobim e de João Gilberto percebeu-se o quanto essa linguagem podia ser maleável, o quanto podia incorporar das informações de ponta da música popular mundial conservando ainda assim a sua essência. Aquilo forneceu uma bela imagem simbólica sobre as possibilidades do Brasil moderno, excitou a imaginação de muitas gerações posteriores, e continua excitando. Como escreveu Lorenzo Mammì, “depois de Tom Jobim e João Gilberto o desafio era demonstrar que a música popular mais inovadora não era apenas ruptura, mas também prolongamento, ponto de chegada de algo que o repertório anterior já prometera”. A partir dali, compositores de classe média passaram a contrabandear livremente referências das mais diversas – da literatura, da música erudita, do cinema, das artes plásticas e também, obviamente, da música popular de outras matrizes – para o campo consolidado da canção. E isso ganhou tal dimensão que a questão já não era mais se a música popular resistiria ao julgamento culto e criterioso da literatura ou da filosofia, mas que ela própria havia se tornado um critério de avaliação, e não apenas das artes, mas da vida. Ou seja, uma lente, um instrumento de entendimento do mundo. Que Jorge Ben, um filho de estivador do cais do porto, tenha feito canções sobre São Tomás de Aquino, Cassius Marcellus Clay e Zico; que Gil tenha especulado sobre religiões orientais de modo tão livre, associando-as, no terreno da canção, a referências explicitamente africanas; que Caetano conseguisse conciliar naturalmente no espaço de uma única música ideias de Guimarães Rosa, Waldick Soriano e Freud; e que Chico tenha trazido para o contexto da canção, sem soar pedante ou hermético, referências da literatura clássica são apenas alguns exemplos possíveis do alargamento de linguagem que a bossa nova iniciou. Tendo sido desde seu nascimento um objeto de consumo, nos anos 1960 e 1970 a canção ganhou um significado cultural que jamais tivera e que possivelmente jamais voltará a ter. A vida pulsava ao som de canções.
No Brasil, mais do que nunca, acreditou-se que a possibilidade de ter uma arte popular de grande qualidade e pregnância social andava de mãos dadas com o horizonte de uma modernização progressista, inclusiva e unificadora. Uma civilização da canção. Com todas as contradições que isso implica, Chico é o principal herdeiro desse mito. Por escolha ou por temperamento, talvez por crença, manteve-se como poucos inteiramente embrenhado na linha da MPB. É como se a trajetória de extrema depuração formal que seguiu fosse o resultado de um paulatino processamento do conjunto de possibilidades estilísticas que já estava definido na época da bossa nova – de certo modo, o mesmo conjunto com o qual lidava Tom Jobim (no plano da composição) e com o qual ainda lida João Gilberto (no plano da interpretação). “A música brasileira, diria Chico, ao contrário de outras artes, já traz dentro de si os elementos de renovação”. O último grande momento de afirmação dessa linhagem na obra de Chico, e também de sua crença na força social da canção, parece ter sido o disco com o sugestivo nome de Paratodos. Lançado na esteira do encerramento da era Collor, de certa esperança suscitada pelas reformas econômicas que levariam ao real, e por um dos últimos momentos de mobilização nacional, Paratodos ensaiava uma volta ao grande mito da MPB, depois de alguns trabalhos mais introspectivos e vagos, boiando em meio à maré roqueira dos anos 1980.
O baião que abre o disco, e que lhe dá nome, faz uma extensa catalogação afetiva dos maiores protagonistas dessa tradição – retomando o guarda-chuva da MPB – para no fim afirmar: “vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro”. A faixa Piano na Mangueira, ao mesmo tempo que melancolicamente indicava o crescimento da distância entre o morro do samba e o piano de Tom Jobim, apostava ainda numa possibilidade de contato. Embora a música não fosse de levantar poeira, havia sempre a esperança de que poderia ainda assim, quem sabe, entrar no barracão, nem que para tanto fosse preciso “mandar subir o piano pra Mangueira”. Grande parte da força de Paratodos vinha também  do fato de ali ter o artista atingido um ponto de equilíbrio entre suas pretensões coletivistas – de uma canção que efetivamente fosse Paratodos – e o desenvolvimento de um idioma pessoal ultra sofisticado. O disco é inteiramente perpassado pela crença reafirmada na canção como porta-voz do destino do país. Não há dúvidas: uma obra prima da discografia brasileira. Mesmo que o Brasil redemocratizado não entrasse nos eixos, haveria sempre a canção para reconciliá-lo consigo mesmo.
É essa fé na canção e no Brasil que parece ter sido perdida. Depois do Paratodos, Chico definitivamente e cada vez mais se tornou “Parapoucos”. Junto com o aparente fim do ciclo histórico do mito-Brasil e com tudo o que isso implicava de investimento na noção de uma unidade nacional, o caminho de um refinamento cada vez maior no artesanato das canções simplesmente já quase não encontrava resposta junto ao público – já não lhe dizia tanto respeito, como se o canal de comunicação tivesse sido perdido. Numa época em que a regressão da escuta (como diria Adorno) parece ter avançado a passos largos, sobrecarregando o grau de redundância em detrimento da originalidade, suas canções perderam muito da relevância que um dia tiveram (parece que o mesmo ocorreu com todos os grandes da MPB). As últimas turnês e discos nos deixam com a impressão de que nada de novo foi deixado no horizonte da memória coletiva.
Na impossibilidade de se refugiar em um mito que se afigura cada vez mais falido, Chico passou a tematizar nas canções a impossibilidade de sua realização. E não apenas isso: foi o primeiro membro do primeiro time da MPB a cogitar, numa entrevista, o fim da canção. É possível que o indicativo mais direto desse mal-estar tenha surgido na música Subúrbio, como sugeriu Fernando de Barros e Silva. Subúrbio é um choro-canção no qual praticamente cada sílaba cantada é acompanhada por um acorde diferente; a melodia é envenenada, cheia de modulações, e transforma a letra numa espécie de discurso. A canção fala da quase impossibilidade atual de se falar da periferia utilizando o afetuoso e melancólico ponto de vista de um choro-canção – que soa idílico, antiquado e paternalista. É como se a linguagem da MPB não fosse mais capaz de integrar simbolicamente as cisões sociais da realidade brasileira. Antenado, lúcido, consciente e cético, Chico adentra os versos finais com a indagação de alguém que olha de fora e se diferencia – e o atordoado “que futuro tem aquela gente toda?”, de Subúrbio, conforme notou Fernando de Barros, já está muito distante do sentimental “tem certos dias em que eu penso em minha gente”, de Gente Humilde (Chico e Vinícius de Moraes) -; e depois arremata com o amargo diagnóstico – “perdido em ti eu ando em roda, é pau é pedra, é fim de linha, é lenha, é fogo, é foda!”. Ao utilizar a primeira pessoa, Chico está falando de sua própria impotência diante da situação.
A referência a Águas de Março, negando, de algum modo, “a promessa de vida no teu coração” – que, no fundo, é a promessa de toda a linhagem que se inaugura com a bossa nova -, fornece o indício final do mal-estar ao qual me referi. Não há mais um Paratodos.
São bem raros na obra de Chico os momentos em que ele fala como Chico. Porque Chico é, ao contrário de Caetano, o poeta das máscaras. Aquele que fala principalmente através de personagens. Seu olhar pessoal costuma ser apreendido indiretamente. O poeta das musas e dos enjeitados. O que está em jogo, junto com o estilhaçamento de uma noção de Brasil, é a perda desse lugar de enunciação. Na verdade, isso já fora de certo modo anunciado na capa de As Cidades, o disco que veio logo depois de Paratodos. Nela, com o auxílio da computação gráfica, foram criadas quatro versões étnicas do próprio Chico, invertendo um pouco a dinâmica da capa de Paratodos: ao invés do retrato 3×4 de Chico (feito, se não me engano, para fichamento numa delegacia) cercado de tipos populares, é o próprio Chico que se transforma nos tipos raciais do grande mosaico brasileiro. O resultado é assombrosamente feio, desajeitado, mas capaz de refletir de maneira premonitória os impasses para o qual Chico se encaminhava. O mal-estar parece ter vindo antes na forma de imagens do que de músicas.
Há lindas fotos de Chico junto com Tom Jobim ao lado de Cartola e de Pixinguinha. Ainda havia, naqueles dias, possibilidade de diálogo. Olhando essas fotos hoje, sente-se que algo se quebrou, está se quebrando. Os enjeitados possuem outros idiomas, idiomas próprios que não necessariamente passam pelo mito ao qual se filiaram Tom e Chico. Logo, só resta a Chico tirar a máscara e falar a partir de seu próprio lugar. E é isso o que acontece em Sinhá – última faixa do último disco de Chico – e de uma forma tão surpreendente que se impõe como o fator decisivo da canção. Partindo do idioma musical de João Bosco – idioma no qual os índices da herança africana do samba aparecem muito nítidos, Chico cria uma narrativa que remonta ao Brasil Colônia. Dá voz a um escravo, reproduzindo em primeira pessoa o tipo de fala da senzala, e conta uma história de violência que parece diretamente extraída dos livros de Gilberto Freyre. Mas o que poderia ter sido uma novela de época torna-se a confissão mais aguda do mal-estar que desde sempre esteve presente nos olhos azuis da MPB – que na letra são os olhos do carrasco, “por que me faz tão mal/ com olhos tão azuis?” -, de sua contradição interna que somente então, quando o mito unificador perdeu força, pôde se revelar na plenitude. Uma modulação no fim da música gera uma variação melódica que, sem perder o contato com a primeira parte, é capaz de comentá-la sob um outro ponto de vista – cai a máscara do escravo e surge a própria face de Chico, dirigindo-se em tom de confissão ao ouvinte: “E aqui vai se encerrar/ o canto de um cantor/ com voz de pelourinho/ e ares de senhor/ cantor atormentado/ herdeiro sarará/ do nome e do renome/ de um feroz senhor de engenho/ e das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou sinhá”.
Poucas vezes uma canção concentrou tamanha violência. De dentro do mito, Chico expõe a contradição viva do lugar que ocupou durante décadas na cultura brasileira. O caminho agora é inverso: é o rapper Criolo que rasura a letra original de Cálice para calcar nela o drama dos excluídos, ao mesmo tempo em que presta uma homenagem a um cânone já distante, que tem sua potência cada vez mais colocada em xeque. Talvez seja esse o momento mais importante da história recente da tal MPB – talvez seja, no fundo, o momento em que Chico dela se despede de vez. Mais do que isso: o momento no qual seu mais legítimo representante declara abertamente sua falência como mito. Que esse momento tenha sido tão pouco comentado serve de constatação da perda da centralidade desse tipo de canção na vida brasileira, de seu recolhimento a um estreito nicho, e talvez até do esvaziamento de um determinado tipo de debate histórico, capaz de vincular num único feixe os frutos e as raízes do Brasil.
Falar de uma Música Pós-Buarque é falar sobre o destino dessa linhagem na possível ausência do mito que a embalava.
* (Fala apresentada no evento Transversais do Tempo, como parte da mesa Música Pós-Buarque, realizado no SESC-Copacabana, 09 de junho de 2012)

dimanche 16 janvier 2011

e agora, MPB?

Caros leitores,

Aí vai um texto sobre o atual momento da canção (e das artes) no Brasil. Foi escrito por um querido e irrequieto amigo. Vou ilustrá-lo com uma obra do insubmisso Picasso - o pintor dos confrontos! - uma releitura desabusada do clássico Almoço na relva, de Manet. Concordando ou não, espero que gostem.

P.


Quem tem memória não precisa de saudosismo

Odeio saudosismo, ele é estéril. Impede-nos de ver e analisar a realidade a nossa volta como ela é. Afinal, se o referencial de bom está no antes, o depois será sempre uma cópia mal feita do que veio.

A música popular do mundo está saudosista; mas a MPB está doente de saudosismo. A geração que nasceu próxima a 1980 e, portanto, produz música desde 2000 em média, sofre de “referencialismo”, veneração das influências e identificação exagerada com estéticas anteriores, o que compromete de maneira grave sua capacidade criativa. Falta a essas gerações, mais de uma, já que estamos em 2010, o que um cineasta francês amigo meu, fã até a alma de MPB, chama de “resource propre”, ou seja, uma conexão com as coisas do seu mundo e as suas próprias idéias, que servem justamente para tornar única, legítima e sedutora determinada forma de expressão.

A memória para o criador só é válida se trouxer potência, se for pra broxá-lo, é melhor o esquecimento. A figura do músico popular brasileiro está irritantemente fundida a do pesquisador. Estão tiamaricotando a MPB. Poetas, compositores de canção, intérpretes e instrumentistas todos têm hoje um ponto em comum: adoração por uma década ou mais, situada em algum lugar do passado, que serve como um tipo de bússola, de mapa, um guia quatro-rodas de por onde andar e para onde seguir.

Qual o problema? Todos. O salto no escuro, alma gêmea da originalidade, a ousadia, outro lado da laranja criativa, o risco, irmão camarada do êxito, estão confortavelmente adormecidos, balançando na rede doce do saudosismo, seguros e confortáveis. A maior parte da força criativa da nossa música está voltada para a manutenção do passado; e quem está lidando com o farto material que o presente nos apresenta? Ninguém. Ou melhor, a música voltada unicamente para o mercado, que padece de falta de conteúdo. Além, é claro, de alguns compositores da periferia, que por vivenciarem uma situação social sui generis, como é o caso dos funkeiros, fogem da imitação barata do rap americano e acabam sendo antropofágicos, o que lhes dá a vantagem de produzir algo original.

Porém, tenhamos a coragem de dizer que o funk é um retrato 3x4 da realidade. Sua amplitude abrange um universo extremamente regional e específico. A MPB, com sua gama infinita de cores, classes e regiões sempre foi um campo fértil e de batalha, para as mais diferentes propostas e lutas estéticas, políticas, raciais, culturais e artísticas, que vão muito além do pitoresco.

Mas por onde anda essa galera? Dormindo na lapa. A lapa, legal demais pra sair à noite, é o túmulo da criatividade das novas gerações. Lá, encontram-se saudosistas de todas as idades para dar um show bizarro de reverência ao passado. Cada um com a sua década escolhida – alguns escolhem todas – procuram cantar e tocar à imagem e semelhança de seus mestres, e quando raramente compõem usam palavras, linhas melódicas, situações que lhes põem de joelhos frente à tradição. A lapa é um mix de ritmos, do samba ao eletrônico, passando por rock, salsa e samba-reggae, mas entre você no buraco que for, vai se deparar com alguém travestido de ontem, achando-se moderno por ser retrô.

Nada está acontecendo no planeta Terra. Tirando um preto na presidência do maior e mais racista país do mundo; um operário que comandou a mais desigual das grandes economias, mulheres presidentas por todo o canto, uma confusão de papéis entre os sexos jamais vista na história dos relacionamentos, uma rede que une todos em tempo real, uma ciência que mistura ratos e aves, uma miríade de casamentos poligâmicos, liberação sexual X países que ainda vivem eras medievais, discussão sobre a legalização das drogas, milícia, tráfico, poesia, caos, sem falar no meio ambiente sendo trucidado a passos largos, ou no amor, cada vez mais estrangeiro. E em meio a essa tsunami energética, essa bomba de cafeína social: nós, artistas em silêncio. Cantando a “nostalgia”, a “orgia”, “os braços castos”, vestidos com suspensórios na alma.

Ora, é claro que isso é um erro! Rockeiros vintões venerando bandas em que todos os integrantes já morreram de overdose, PELO AMOR DE DEUS – que o diabo os tenha! Poetas do meu Brasil, do mundo, apareçam. Vomitem nas referências, matem-nas, a música eletrônica não dá conta da alma humana, a música orgânica precisa do seu depoimento, a sua geração precisa.

– A classe média, sobre todas, necessita recuperar seu caráter artístico próprio –

Mas quero dizer logo: isso não é culpa exclusiva dos artistas da canção. Há uma crise ainda pior que a da produção, que é a crise da audição.

É, meu amigo, você que consome música, você que é viciado no ontem, você; você financia o saudosismo. Diga não a ele. Memória não é escravidão, é potência!

Sobre a crise da audição há muito o que dizer, mas falarei depois, tô cansado agora. Já adianto, porém: ela é DE (fu) DOER!

Ah; eu sou Gustavo Sant’Anna - compositor e jornalista

www.myspace/gustavosantanna.com

dimanche 23 mai 2010

feijoada, bossa nova e racismo


Domingo fui numa feijoada no apartamento de um amigo, em Paris. Entre os que lá estavam, destacava-se a figura de um octagenário. Curioso, comunicativo e simpático, Robert (Rôbér) não parava de interagir com os mais jovens. Falou das disposições astrais (ele é astrólogo), disse que foi amigo de Marlon Brando (“um gênio!”), do pai de Sarkozy (“muito mais inteligente que o filho”), que conheceu Getúlio Vargas e outros figurões da história brasileira (“nenhum mérito meu, pois naquele tempo todos os estrangeiros ilustres que vinham a Paris acabavam transitando num pequeno grupo do qual eu fazia parte”). Alternava a falação com ataques certeiros na caipirinha. E, quando esta acabou, não hesitou em molhar o bico na cerveja. Servida a mesa, Robert empapuçou-se de farofa. Decerto que apreciou o feijão, a couve, a laranja e o arroz. Mas naquela noite sua paixão mais pungente foi a farofa. O francês entregou-se com ardor ao acompanhamento e fez dele o verdadeiro protagonista da feijoada.

E eis que fez-se o silêncio na sala de estar. Alguns suspiros isolados sacudiam ocasionalmente o ar parado. Panelas vazias eram o índice de corpos exaustos, empenhados na dura batalha da digestão. Cada bucho, brasileiro ou não, envergava-se diante do peso daquela maçaroca de lombinho, paio, carne seca, feijão preto... Alguém comentou, em francês, que a feijoada tinha sido inventada pelos escravos brasileiros. Uma leseira melancólica tomou conta de todos. Pairava no ar, volatilizada, uma irresistível e inominável “vontade de rede”. Foi um momento de pouca inteligência. Até Robert calou-se, subitamente esvaziado de assuntos. O anfitrião tomou então a sábia decisão de colocar uma musiquinha. Bolero, chansons francesas, standards americanos. Todo mundo gostou. Foi quando o timbre camurça de Emílio Santiago tocou nossos tímpanos, cantando Corcovado, de Tom Jobim. Ah, o Brasil... pensei com cara de bocó. Tomo um susto: Robert havia se levantado e dançava, jogando pernas e braços ao ritmo da música. Lembrava o grego Zorba. O povo parou pra ver. Aplausos. Sentindo que ainda detinha o monopólio das atenções, o ancião se pronuncia: “a música a mais inteligente, a mais sensual de todas, é a música brasileira”. Depois, ato contínuo, diz que ela é fruto da mestiçagem de línguas e culturas no Brasil. Comparou com o caso da América do Norte, onde também a mestiçagem havia produzido o jazz. E, por fim, levantou jocosamente velhos clichês sobre o nosso caráter festivo: “no Brasil ninguém trabalha, porque logo alguém começa a batucar e aí todo mundo dança”! Ah, o Brasil... exaltei com uma ternura bocó, o corpo abandonado sobre a poltrona.

X

No dia seguinte, terminei a leitura do recém-lançado “Aqui Ninguém é Branco”(Liv Sovik), que analisa as relações raciais no terreno da música popular brasileira. Devo admitir, o texto me irritou. Por motivos vários que não conseguirei abordar no curto espaço deste blog. Mas, fundamentalmente, porque embora a autora tenha razão sobre a maioria das avaliações que faz do lado tenebroso, abominável do Brasil, as saídas e os pontos-de-vista que propõe, embora bem-intencionados, talvez até irrefutavelmente realistas, não me convencem. Não me convencem porque creio que tendem a enfraquecer ou simplificar demais a experiência do país. Porque retiram dele o pouco que lhe restou de carga utópica. Isso se vincula, no texto, a uma clara desvalorização da mestiçagem, vista como “a linha de fuga” que “nega a existência de negros e esconde a existência de brancos”, como um “discurso” que “permite que os que falam desde a perspectiva branca possam brincar de ser populares”. Em outras palavras, o discurso da mestiçagem (“aqui ninguém é branco”) tende a mascarar a opressiva hierarquia que há séculos estrutura o Brasil. Fica-se com a impressão (a autora jamais diz isso), de que tudo aquilo que não é denúncia desse estado desigual, relato da opressão, tudo aquilo que aparentemente não parte dessa tensão formadora (ou que a encobre), que não aspira ao reconhecimento de nossa cisão social - reconhecimento que possibilita uma melhor identificação, no promíscuo quadro brasileiro, do opressor e do oprimido - que tudo isso perde, hoje, muito do seu valor. Torna-se o reflexo distante, a nostalgia molenga de um país que deixou de ser, ou jamais foi (“Ah, o Brasil...”). Ou puro cinismo branco. Pior ainda: tem-se a impressão (o livro não diz isso!) de que as canções que entoaram essa utopia acabaram por contribuir de algum modo para o torpor conciliatório que sempre inibiu “a verdadeira mudança” – ajudando na construção de um mito que atrapalha e retarda a resolução do problema ancestral das hierarquias raciais e sociais. Que mito é esse? O de um país unificado pelo afeto, indiferente aos matizes de cor de pele, construído sob o signo do encontro, da dança e da alegria. Será que para promover justiça social teremos que abrir mão desse projeto de Brasil?

Sob esse ponto de vista é mais do que compreensível que a bossa nova seja abordada pela autora de modo pouco lisonjeiro. Ressalta-se não o alcance de suas conquistas estéticas ou a singularidade de sua visão de mundo, mas as suas “limitações eurocêntricas”, “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje sem preconceitos ou caricaturas de feminilidade”. Ao evidenciar o consenso favorável de historiadores e críticos em torno da bossa nova, Liv Sovik coloca-se como voz dissonante (ao lado de Tinhorão) para desvendar a “aparente branquitude mundial da bossa nova”, em seu cosmopolitismo cool de classe média. A moça do corpo dourado do sol de Ipanema é devidamente setorizada (“branco-mestiça”), tornando-se o ícone do “ideal bossa-novista de homens e mulheres lindas e quase-brancas”. Para a autora, “repensar a tradição cosmopolita brasileira, sem nostalgia pelas relações sociais do passado, significa dar as costas para a contraluz em que vemos a Garota de Ipanema, pois é essa luz sublime, praiana, que ofusca as relações de poder, marcadas pela desigualdade econômica, de gênero e racial”.

Recentemente fiquei sabendo que os astronautas americanos escutavam no cockpit da nave, no momento em que desciam na lua, a gravação de The Girl From Ipanema, com o violão de João Gilberto e a voz de Astrud. Não acho um fato de todo irrelevante. Fico pensando se realmente teríamos a ganhar em dar as costas para essa “luz sublime, praiana”. Ou se não é justamente dela que viria nossa contribuição mais radical e doce para a humanidade. Reduzir novamente a bossa nova a uma música de garotos brancos da classe média é dar um passo atrás no pensamento cultural. Denunciar seus “limites eurocêntricos” e “sua relativa impotência em explicar a sociabilidade brasileira de hoje” não deixa de ser uma prova de quão superficial é o entendimento que se tem ainda hoje sobre ela – pois a música de Tom e João só foi o que foi justamente porque ousou ir além dessas questões. É não entender o lugar utópico de onde brotou (e brota) uma boa parte de nosso cancioneiro, de Ary e Caymmi a Caetano e Chico. Prefiro o ponto de vista de Lorenzo Mammì: a música de Tom Jobim (a bossa nova em seu melhor) é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu. É preciso saber se ainda queremos manter acesa a chama dessa promessa, se teremos a força e a disposição de realizá-la. Robert, o velho dançarino, a compreendeu e acolheu. Sovik, não.

mardi 11 mai 2010

o camisa 10


Foi na Copa do Mundo de 1986 que pela primeira vez senti que era brasileiro. É uma das lembranças mais nítidas que tenho de minha infância. Eu tinha oito anos de idade e lembro que fomos para casa de uma tia assistir ao jogo Brasil e França. O resto todos sabem: nossa seleção perdeu de forma dramática, nos pênaltis. Impressionante como a agitação em torno das Copas serve de marco na vida brasileira. Como diria Nelson Rodrigues, o menino de 1986 está enterrado na minha carne como um sapo de macumba. Não me lembro direito dos jogos que ganhamos antes de enfrentar a França; lembro apenas da tarde em que fomos derrotados. É a ruptura que nos marca, seja ela oriunda da grande vitória ou da grande derrota. Lembro do abatimento que tomou conta de todos depois que o time Francês converteu seu último pênalti. Uma tristeza que eu nunca vira antes. Pelo que dizem, a dor de 1986 foi café pequeno perto daquela de 1982 – este sim o grande trauma futebolístico da geração dos anos 1980, comparável somente, dizem, ao absurdo inenarrável (inimaginável, sim) da Copa de 1950. Me agrada a idéia de que o Maracanã tenha sido inaugurado com uma grande ferida – a derrota para o Uruguai na final. Pois quem nunca foi derrotado é uma boa besta (mais uma vez Nelson). Assim como o fato de que a nossa tão aclamada festividade tenha sido (e continue sendo) erigida sobre terríveis desastres. Isso torna a alegria mais depurada, mais curtida, mais intensa e sábia, porque trágica. Se nossas misérias são insofismáveis, nossa intensa vocação para a alegria não é menos real. De passagem pelo Rio nos anos 70, o cineasta Pasolini sacou tudo: “A pátria desgraçada, devotada sem escolha à felicidade”.

Voltemos a 1986. Como eu dizia, o sentimento de ser brasileiro surgia junto com a dor e impotência de nossa derrota. Me senti parte daquilo, padecendo da mesma desilusão, precipitando do mesmo sonho. Adicione-se a isso uma pitada de injustiça, pois foi uma daquelas tardes em que o Destino conspira contra nós. Hoje, revendo partes do jogo no Youtube, tenho a mesma sensação: o Brasil abriu o placar com um gol primoroso, enquanto Platini o empatou num lance banal de oportunismo. E se o Zico não tivesse perdido aquele pênalti no fim da partida? Pergunta maldita... Logo ele! Os brasileiros que mais sofreram com aquele jogo foram os flamenguistas. Uma espécie de dupla derrota. Depois do trauma de 82, lá estava o nosso Galinho de Quintino no epicentro de mais uma frustração nacional. Isso me marcou muito. Zico foi meu primeiro herói. Seus gols, suas cobranças de falta, sua figura magra no uniforme vermelho e negro, seu nome veloz e diferente (zzzzzico!!), seu carisma fora e dentro de campo e a mítica de suas vitórias pelo Flamengo habitaram fundo minhas fantasias infantis. No jogo de botão, o melhor do time era sempre batizado de Zico. Queríamos ser o Zico. E queríamos que ele se tornasse o herói da seleção.

Azar dos brasileiros. Desforra dos rubro-negros. No ano seguinte ao fracasso da Copa, Zico voltou ao Flamengo e tomou de assalto o Campeonato Brasileiro. Era um time de gala, com Bebeto, Zinho, Leonardo, Andrade, Renato Gaúcho, Júnior, Edinho... E eu tava no Maracanã lotado, no primeiro jogo da semifinal contra o Atlético Mineiro, 1x0, gol do Bebeto, o estádio inteiro entoando hinos, gritando Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo, Ziiiiicoooo... Voltei para a casa triunfante, embriagado de multidão, certo de que seríamos campeões, tremendo de afeto pelo Galinho. E não deu outra: fomos campeões (em cima do Inter).

Pois bem. Muito tempo se passou. O Flamengo foi caindo, e eu fui me desinteressando pouco a pouco do futebol. O próprio Zico se tornou um outro Zico, ainda muito querido, mas um tanto triste, sorumbático, meio sem graça... E eis que o esquecimento jogou seu veludo negro sobre esses fatos, e uma nova constelação de heróis brasileiros começou a pintar em minha adolescência, quase todos ligados a música popular. E foi justamente um deles que me levou de volta ao Galinho. Um dia, já com quase trinta anos na cara, ouvi “Camisa 10 da Gávea”. Jorge Ben é o melhor pintor da corte futebolística. Espécie de Goya, de Velásquez da canção, ninguém se compara a ele na hora de traçar o perfil de um jogador, de uma jogada, o clima de uma torcida. No dia em que escutei o “Camisa 10” fui arremessado de volta à mitologia de minha infância. O toque de violão percussivo, com os atabaques ao lado, a cuíca, o tema da flauta, o apito....aquilo me emocionou pra chuchu. Vi Zico ressurgir do limbo de minhas primeiras recordações, novamente jovem, ágil, vigoroso e nobre, encantando as multidões com eternos gols de placa. Era o retrato perfeito daquilo que o Galinho foi, e continua sendo, na minh’alma infantil. O herói trágico, malfadado, e não obstante, ou por isso mesmo, fascinante. “Pode não ser o jogador perfeito/ mas a sua malícia o faz com que seja lembrado/ pois mesmo quando não está inspirado/ ele procura a inspiração”. A compreensão de que foi o compromisso de Zico com a beleza que o fez ser profundamente amado pelo povo de sua época. Em quatro minutos e cinco segundos, Jorge Ben restituiu à minha vida a aura mágica da infância. Para quem foi flamenguista nos anos 80, a palavra Zico ainda vibra em alguma corda próxima a esperança, alegria, sentido de vida, desejo de beleza e poesia. E é por isso que somos seus eternos fãs.

Obs: Há pouco tempo atrás, num festival de jazz no Rio de janeiro, perguntaram ao Marcelo D2 se ele era fã da Stacey Kent. Sua resposta foi: “Não. Fã mesmo eu sou é do Zico”.

vendredi 11 décembre 2009

sarau em Paris


No fim de novembro toquei num café ao norte de Paris. Fizemos uma espécie de “sarau brasileiro”, no qual algumas participações ensaiadas (mas não muito), contracenavam com canjas espontâneas. A base era simplíssima: violão e flauta e mais as vozes femininas.

Diga-se sem nenhum pedantismo que, apesar do esquema mambembe, a coisa funcionou bem. O pequenino café “Aux Copains” ficou abarrotado de gente. Muitos sentaram-se no chão. A música, mesmo quando não era conhecida do público, ficou em primeiro plano durante quase todo o tempo, dominando as atenções. Quando as vozes erguiam-se acima dela, ouviam-se logo reclamações. Tive a sensação de que foi criada uma espécie de comunhão afetiva no local, que a todos colocava na condição de participantes de um evento único, vivo. Nos dias seguintes recebi várias manifestações espontâneas de pessoas me dizendo o quanto haviam gostado daquela noite.

Fiquei pensando: afinal, o que fez o evento realmente acontecer? Decerto, alguns fatores. O menos relevante foi minha performance. Gripado e sem cancha de palco, cantei mal. O repertório ajudou, claro, ao evocar a entidade chameguenta, lânguida e vivaz da musica popular brasileira. A dinâmica de cantoras que se alternavam comigo ao microfone também contribuiu, renovando as atenções (“quem é que vai cantar agora?”). Mas o principal, ao meu ver, ficou por conta da criação de um contexto propício ao encontro em torno da canção. O aconchego do café, a penumbra da luz de velas, a informalidade do evento, a alegria das pessoas, tudo isso participou da música. Porque música não é apenas a execução técnica de uma peça sonora, mas a criação de um acontecimento coletivo. Não havia um palco bem delimitado que separasse o público dos músicos e as próprias canjas improvisadas criavam a impressão de que tudo estava misturado. As pessoas sentiram-se dentro do evento, como figuras integrantes de uma paisagem musical. Já não importava muito se o cantor desafinava um pouco.

Ora, isso aponta para a discussão em torno dos atuais modos de escuta. O assunto é complexo, mas algo me diz que o modelo do ouvinte silencioso, engessado numa cadeira, fruindo atenciosamente da polissemia de letras inteligentes e da sutileza de acordes dissonantes – ao que parece este modelo está gasto. No mínimo, cansado. É possível que o público de hoje, sobretudo os jovens, esteja esperando outra coisa. Talvez a música tenha se tornado – ou tenha voltado a ser – o objeto em torno do qual se constroem encontros. Objeto capaz de criar atmosferas afetivas. O forró e o samba se beneficiam disso. Mais do que estilos musicais para serem ouvidos, reforçaram sua aura de evento (onde se pode dançar, beber cerveja e encontrar pessoas ao mesmo tempo em que se ouve música). Irrequieto e bombardeado de estímulos, o espectador atual seria atraído por algo mais participativo, que o inclua: a música não mais como simples informação sonora, mas como experiência vivida. É possível ver nisso o sintoma de uma regressão da escuta (no sentido de Adorno), de um empobrecimento da experiência musical. Pode ser... Mas podemos também pensar numa revalorização daquilo que o musicólogo John Blacking destacou como qualidade apreciada e almejada na música de certas etnias africanas: a saber, seu “poder de unir as pessoas em irmandade”.